O novo paradigma de segurança: o que o Brasil tem em comum com a Faixa de Gaza
O processo histórico-político de formação dos Estados contemporâneos concebeu, a partir da década de 1980, a configuração atual em que o Estado é o responsável por assegurar a ordem que conduz o modus operandi da racionalidade neoliberal. A partir do século XXI, as ameaças à ordem do Estado adquiriram naturezas difusas, o que ficou claro após os acontecimentos do 11 de setembro de 2001, de modo que o termo segurança tornou-se o cerne dos discursos políticos e todos os assuntos passaram a ser regidos pelo objetivo de canalizar as ameaças e garantir a segurança. Contudo, os significados políticos desse processo que configuram o que entende-se por democracia securitária provocam implicações capazes de assimilar o Brasil ao cenário de guerra em que a Faixa de Gaza se encontra há anos.
A Guerra ao Terror, anunciada por George W. Bush, foi fundamental nesse processo, uma vez que foi responsável por disseminar uma concepção de inimigo em comum a todos os Estados Ocidentais. A principal característica do inimigo era sua natureza difusa, pois ele poderia se encontrar tanto no campo externo quanto interno do Estado, de forma que as estratégias e técnicas de combate seriam, portanto, as mesmas. Entende-se, assim, que existem certas categorias de risco ao Estado capazes de perturbar sua ordem e desestabilizar o modus operandi neoliberal. Esse entendimento possibilita igualar o que o ocidente interpreta como terrorista fundamentalista ao cidadão que protesta na rua como inimigo de igual agressividade. Sendo assim, para entender a comparação entre o Brasil e a Faixa de Gaza que se pretende demonstrar, é preciso ficar claro que a principal característica da democracia securitária é a sobreposição da garantia da ordem do soberano à ordem legal, por meio da instrumentalização de um aparato contra insurgente, que admite a crise como modo de gestão permanente.
O conflito da Palestina há décadas vitimiza milhares de vidas e suas consequências atingem muito mais do que a geopolítica do Oriente Médio. O alinhamento entre sionismo e ocidente, representado por Reino Unido e Estados Unidos, concretizou, a partir de 1948, a expansão territorial do Estado Judeu por meio da ocupação dos territórios palestinos, o que foi possível devido à supremacia militar das Forças de Defesa de Israel (FDI), que atuam de forma dupla: internamente como polícia e externamente como exército – configurando uma polícia militarizada e um exército policializado.
Nesse caso, configura-se a hibridização supracitada em que o inimigo interno e o externo é o mesmo: o árabe palestino, diretamente associado às representações orientalistas atribuídas aos árabes, carregadas de preconceito e racismo – como delineado por Said – e que, portanto, deve ser combatido com igual intensidade e sob o emprego das mesmas táticas e estratégias de guerra.
Israel utilizou-se diretamente do contexto de Guerra ao Terror para intensificar e consolidar sua militarização nos territórios ocupados na Palestina. A estratégia israelense em Gaza é de controle máximo e responsabilidade mínima, como sustenta Darryl Li. Para tal, as FDI empregam instrumentos e tecnologias de uso militar como drones, que fazem o monitoramento máximo da região e estabelecem assentamentos, rotas, pontes, túneis e sistemas de postos de controle estratégicos. As Forças de Defesa de Israel possuem autorização de atirar para matar em caso de suspeita de qualquer ameaça à ordem. Também são usados instrumentos categorizados como “armas não letais” tais como bombas de efeito sonoro, gás lacrimogêneo, demolição de casas e ruídos infravermelho. Dessa forma, Israel sufoca Gaza e controla os palestinos, garantindo sua ordem interna da mesma forma que ameaça os países árabes vizinhos de modo a garantir o sucesso do Estado sionista.
Assim, Israel utiliza-se da geopolítica instável em que se insere para legitimar a crise e a exceção como modo de gestão permanente, configurando uma democracia securitária. O modelo de doutrina militar de Israel é exportado para outros países uma vez que a questão de segurança em garantia de ordem tornou-se um fenômeno transnacional necessário para o sucesso do modus operandi neoliberal. O Brasil importa o modelo militar israelense. Por meio de intervenções militares cirúrgicas, transforma o ambiente urbano nacional em mini Gazas, configurando uma democracia securitária. Makram Khoury-Machool descreve esse fenômeno de importação das estratégias militares de guerra israelense aplicada contra palestinos em outros territórios como palestinização.
Comunidades vulneráveis econômica e socialmente, produto da desigualdade social brutal produzida pelo neoliberalismo, são os principais alvos do militarismo urbano. As operações militares nas comunidades do Rio de Janeiro como a ocorrida no complexo do Alemão (2010), Rocinha (2011) e a da Maré (2018), travestidas de pacificação, são exemplos do emprego de armamento e táticas de guerra importadas do modelo israelense. Estas consideram todo o conjunto populacional das favelas como ameaças à ordem. A periferia é cada vez mais sufocada por enclaves urbanos, os cidadãos cada vez mais vigiados por sistemas de segurança como drones, câmeras, identificação biométrica e GPS.
Comumente, manifestações de rua são cercadas por policiais armados com aparato contrainsurgente, como fuzis e bombas de gás lacrimogêneo – assim como acontece em Gaza – e terminam em casos de policiamento agressivo. Militantes, estudantes e cidadãos são comparáveis a terroristas por contestarem a ordem vigente e, por isso, a polícia militar tem legitimidade ao agir sob a premissa de “atirar para matar”. Expressões como essa são cada vez mais aceitáveis pela população brasileira, a exemplo da última eleição presidencial, o que legitima a guerra urbana assegurada pela configuração da democracia securitária.
Nesse contexto, abusos de autoridade e violação de direitos humanos são cada vez mais frequentes e entendidos como normais. O Brasil passa a configurar uma guerra urbana. A população é cercada e submetida a dispositivos de controle importados de conjunturas de guerra, como Gaza, e a democracia é reduzida a aspectos técnicos e representativos como o ato de votar a cada quatro anos. Dessa forma, estamos mais próximos do que imaginamos da hostilidade da guerra. Pior, a aceitamos e nos curvamos a ela em nome da segurança do neoliberalismo.
*Maria Canalli Angeli, graduanda em Relações internacionais pela Universidade Federal de São Paulo, pesquisadora no campo da segurança Internacional voltada ao estudo de caso do Estado de Israel diante da Questão da Palestina.